Entenda porquê o dia 18 de maio é o Dia Nacional de Luta Pelo Fim da Violência Sexual Infantil:
Durante mais de três anos, na década de 70, pouca gente ousou abrir a gaveta do Instituto Médico-Legal de Vitória, no Espírito Santo, onde se encontrava o corpo de uma menina de nove anos incompletos. E havia motivos para isso. Além de o corpo estar barbaramente seviciado e desfigurado com ácido, se interessar pelo caso significava comprar briga com as mais poderosas famílias do estado, cujos filhos estavam sendo acusados do hediondo crime. Pelo menos duas pessoas já tinham morrido em circunstâncias misteriosas por se envolverem com o assunto.
Ainda assim, corajosos enfrentavam os poderosos exigindo justiça, tanto que o corpo permanecia insepulto na fria gaveta, como se fosse a última trincheira da resistência. O nome da menina era Araceli Cabrera Crespo e seu martírio significou tanto que o dia 18 de maio – data em que ela desapareceu da escola onde estudava para nunca mais ser vista com vida – se transformou no Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Por uma dessas cruéis ironias, Jardim dos Anjos era onde ficava um casarão, na Praia de Canto, usado por um grupo de viciados de Vitória (ES) para promover orgias regadas a LSD, cocaína e álcool, nas quais muitas vítimas eram crianças – anjos do sexo feminino. Entre a turma de toxicômanos, era conhecida a atração que Paulo Constanteen Helal, o Paulinho, e Dante de Brito Michelini, o Dantinho, líderes do grupo, sentiam por menininhas. Dizia-se, sempre a boca pequena, que eles drogavam e violentavam meninas e adolescentes no casarão e em apartamentos mantidos exclusivamente para festas de embalo. O comércio de drogas era, e é muito enraizado naquela cidade. O Bar Franciscano, da família Michelini, era apontado como um ponto conhecido de tráfico e consumo livres.
Suspeitas sobre a mãe da menina
Araceli vivia com o pai Gabriel Sanches Crespo, eletricista do Porto de Vitória, a mãe Lola, boliviana radicada no país, e o irmão Carlinhos, alguns anos mais velho que ela. Na casa modesta, localizada na Rua São Paulo, bairro de Fátima, era mantido o viralata Radar, xodó da menina, que o criava desde pequenino. Segundo o escritor José Louzeiro que acompanhou o caso de perto e o transformou no livro “Araceli, Meu Amor” – o nome Radar foi escolhido pela garota “para que o animal sempre a encontrasse”. Araceli estudava perto de casa, no Colégio São Pedro, na Praia do Suá, e mantinha urna rotina dificilmente quebrada. Ela saía da escola, no fim da tarde, e ia para um ponto de ônibus ali perto, quase na porta de um bar, onde invariavelmente brincava com um gato que vivia por ali.
No dia 18 de maio de 1973, uma sexta-feira, a rotina de Araceli foi alterada. Ela não apareceu em casa e o pai, num velho Fusca, saiu a procurá-la pelas casas de amigos e conhecidos, até chegar ao centro de Vitória. Nada. A menina não estava em lugar algum. Só restou a Gabriel comunicar a Lola que a filha estava desaparecida e que tinha deixado seu retrato em redações de jornais, na esperança de que fosse, realmente, somente um desaparecimento. No dia seguinte, quando foi ao colégio para conseguir mais informações, Gabriel ficou sabendo que a menina tinha saído mais cedo da escola. De acordo com a professora Marlene Stefanon, Araceli tinha “ido embora para casa por volta das quatro e meia da tarde, como a mãe mandou pedir num bilhete”.
Na véspera, Lola tivera uma reação aparentemente normal ao constatar a demora da filha em chegar em casa. Primeiro, ficou enervada; depois, preocupada. No sábado, tarde da noite, sofreu uma crise nervosa e precisou ser internada no Pronto Socorro da Santa Casa de Misericórdia. Ainda no início do processo, acabariam pesando sobre ela fortes suspeitas e graves acusações. Lola foi apontada como viciada e traficante de cocaína, fornecedora da droga para pessoas influentes da cidade e até amante de Jorge Michelini, tio de Dantinho. E mais: ela era irmã de traficantes de Santa Cruz de La Sierra, para onde se mudou tão logo o caso ganhou dimensão, deixando para trás o marido Gabriel e o outro filho, Carlinhos. Não se sabe até onde Lola facilitou ou estimulou a cobiça dos assassinos em relação a Araceli.
Menina era usada no tráfico de drogas
A respeito de Dantinho e de Paulinho Helal, dizia-se que uma de suas diversões durante o dia era rondar os colégios da cidade em busca de possíveis vítimas, apostando na impunidade que o dinheiro dos pais podia comprar. Dante Barros Michelini era rico exportador de café (tão ligado a Dantinho que chegou a ser preso, acusado de tumultuar o inquérito para livrar o filho). Constanteen Helal, pai de Paulinho, era comerciante riquíssimo e poderoso membro da maçonaria capixaba. Seus negócios também incluíam imóveis, hotéis, fazendas e casas comerciais. Já o eletricista Gabriel, seu maior tesouro era a filha. No domingo, ele foi à delegacia dar queixa, onde lhe foi dito que tudo seria feito para encontrar Araceli. Na Santa Casa, ele contou a Lola o resultado de sua busca e falou da garantia dos policiais de que tudo acabaria bem. Lola pareceu não acreditar – e chorou. O escritor José Louzeiro não tem dúvida:
Lola foi, indiretamente, a causadora do hediondo crime de que sua filha foi vítima. “Na sexta-feira, a mando da mãe, Araceli tinha ido levar um envelope no edifício Apoio, no Centro de Vitória, ainda em construção, mas que já tinha uns três ou quatro apartamentos prontos, no 8º andar. A menina não sabia, mas o envelope continha drogas. Num dos apartamentos, Paulinho Helal, Dantinho e outros se drogavam. Ela chegou, foi agarrada e não saiu mais com vida”, conta o escritor.
O que aconteceu realmente com Araceli Cabrera Crespo talvez nunca se saiba. E talvez, seja bom mesmo não conhecer os detalhes, tamanha é a brutalidade que o exame de corpo delito deixa entrever. A menina foi estupidamente martirizada. Araceli foi espancada, estuprada, drogada e morta numa orgia de drogas e sexo. Sua vagina, seu peito e sua barriga tinham marcas de dentes. Seu queixo foi deslocado com um golpe. Finalmente, seu corpo – o rosto, principalmente – foi desfigurado com ácido.
Corrupção e cumplicidade da polícia
Seis dias depois do massacre da menina, um moleque caçava passarinhos num terreno baldio atrás do Hospital Infantil Menino Jesus, na Praia Comprida, perto do Centro da capital. Mas o que ele encontrou foi o corpo despido e desfigurado de Araceli. Começou, então, a ser tecida uma rede de cumplicidade e corrupção, que envolveu a polícia e o judiciário e impediu a apuração do crime e o julgamento dos acusados por uma sociedade silenciada pelo medo e oprimida pelo abuso de poder.
Dois meses após o aparecimento do corpo, num dia qualquer de julho de 1973, o superintendente de Polícia Civil do Espírito Santo, Gilberto Barros Faria, fez uma revelação bombástica. Ele afirmou que já sabia o nome dos criminosos, vários, e que a população de Vitória ficaria estarrecida quando fossem anunciados, no dia seguinte. Barros havia retirado cabelos de um pente usado por Araceli e do corpo encontrado e levado para exames em Brasília. confirmando que eram iguais. Por que a providência? Até então, havia dúvidas que era de Araceli o corpo que apareceu desfigurado no terreno baldio. Gabriel sabia que era o da filha – ele o reconheceu por um sinal de nascença, num dos dedos dos pés. Mas Lola disse o contrário. Assim que se recuperou, ela foi ao IML reconhecer o corpo e afirmou que não era de sua filha. Louzeiro recorda um outro fato a respeito disso, altamente elucidativo. Certo dia, Gabriel levou o cachorro Radar ao IML só para confirmar, ainda mais sua certeza. Não deu outra: mesmo com a gaveta fechada, animal agiu realmente como um radar, como Araceli premonizara, e foi direto à geladeira onde estava o corpo de sua dona.
O delegado muda de opinião
Porém, sem que explicasse o porquê (na noite anterior, ele tivera um encontro com Dante Michelini), Barros Faria mudou de opinião e, ao invés de estarrecer a população de Vitória, provocou riso e deboche por uma lado, e revolta, por outro. O assassino de Araceli, segundo ele, era um velho negro, demente, que perambulava pela Praia do Suá, perto da escola da menina. Começava a escalada de suborno, ou de medo. Coisa que não fazia parte do caráter de um sargento da Polícia Militar, lotado no serviço secreto, e de um vereador do MDB de Vitória. O primeiro, Homero Dias, acabaria pagando com a vida as investigações que fez. Certo de que estava mexendo em casa de marimbondos, o sargento Homero procurava se cercar de muito cuidado durante suas investigações. Tudo que apurava, ele comunicava a seu superior imediato, o capitão Manoel Araújo, também delegado de polícia, em quem confiava. A esposa, Elza, e ao sogro, João Dias, confidenciou certa vez: “Já tenho material para incriminar muita gente. Acho que o capitão Araújo já pode interrogar o filho de Constanteen Helal.”
Repentinamente, Homero foi afastado do caso pelo próprio capitão Araújo e recebeu ordens de perseguir o traficante José Paulo Barbosa. o Paulinho Boca Negra, na ilha do Príncipe. Na operação, Homero foi atingido nas costas e morreu. O próprio Boca Negra diria depois, na Penitenciária de Vitória, até ser calado para sempre, tempos após, com 27 facadas:
“Quem matou o sargento Homero foi o soldado da PM que estava com ele. Eu vi quando ele atirou.”
Evidências apontam para Helal e Dantinho
O vereador era Clério Vieira Falcão, falecido há cerca de seis anos, que travou incansável luta para botar na cadeia os assassinos de Araceli. Ele deflagrou uma campanha, que repercutiu em todo o país, exigindo a apuração do crime e a apuração dos culpados, que apontava: Dante de Brito Michelini, Paulo Constanteen Helal e a amante deste, Marisley Fernandes Muniz, viciada em drogas. O nome dela surgiu no caso graças à paciente investigação feita pelo perito Asdrúbal de Lima Cabral, o Dudu, que, com a ajuda de seu colega carioca Carlos Éboli, também muito contribuiu para que o caso não fosse esquecido. Louzeiro recorda, por exemplo, que certa ocasião Dudu seguiu a mãe de Araceli, Lola, até São Paulo. Ela tinha saído de Vitória vestida praticamente como uma mendiga e, num hotel da capital paulista, vestira roupas elegantes e embarcara num avião para a Bolívia. Motivo: comprar drogas para a gangue dos acusados, mesmo após a morte da filha.
Eleito deputado, Clério Falcão conseguiu formar uma CPI para apurar o caso, que obteve mais resultados que a própria polícia. Ouvida na CPI, Marisley Fernandes declarou que o casarão do Jardim dos Anjos era reduto de festas de filhos de milionários, onde se consumia grandes quantidades de cocaína e LSD.
Ela também disse, mas depois negou, que Paulinho Helal a tinha levado ao local onde estava o corpo de Araceli, num carro onde havia um frasco com um líquido amarelo e luvas. O objetivo dele, segundo a amante, era ver se precisava despejar mais ácido no cadáver para dificultar o reconhecimento. Também convocado a depor na CPI, o perito Carlos Éboli disse que os assassinos deram uma dose excessiva de LSD a Araceli.
O Caso Araceli também fez vítimas do lado dos acusados. Uma delas foi o jovem Fortunato Piccin, um viciado que perdia completamente a razão quando se drogava em excesso. Ele foi apontado pelo capitão Manoel Araújo como suspeito do crime e morreu depois de tomar um remédio trocado, na Santa Casa de Misericórdia de Vitória, da qual Constanteen Helal era provedor. Também há suspeitas de que o próprio Jorge Michelini, tio de Dantinho, tenha sido eliminado por ameaçar contar tudo que sabia. Numa madrugada, o carro que dirigia foi atingido pelo ônibus de uma empresa, cujos veículos só circulavam até meia-noite. Segundo Louzeiro, outros dois assassinados foram um mecânico que prestava serviços para Paulinho Helal e o porteiro do Edifício Apolo.
O corpo de Araceli, segundo as investigações, teria sido levado num Karmann-Ghia do Edifício Apolo para o Bar Franciscano, onde ficou dentro de uma geladeira. Posteriormente, o corpo teria sido conduzido à Santa Casa de Misericórdia, com a cumplicidade do funcionário do serviço de necrópsia Arnaldo Neres, que viraria depois dono de funerária. Finalmente, o cadáver da menina foi deixado no terreno baldio. Muita gente viu e soube do que estava acontecendo durante aqueles dias. Os carrascos de Araceli fizeram tudo quase abertamente, tal a certeza da impunidade. O inquérito policial não passou de uma farsa e o longo processo judicial não conseguiu transformar evidências em provas.
Ainda assim, em agosto de 1977, o juiz Hilton Sily (falecido em abril passado), determinou a prisão de Dante de Brito Michelini e Paulo Constanteen Helal, pelo assassinato de Araceli, e de Dante Barros Michelini, acusado de tumultuar o inquérito para livrar o filho. Em outubro do mesmo ano eles já estavam soltos e o juiz havia sido “promovido” a desembargador. Em 1980, Dantinho e Paulinho foram julgados e condenados, mas a sentença foi anulada. Em novo julgamento, realizado em 1991, os reús foram absolvidos.
O crime já prescreveu. Mas o Caso Araceli é uma ferida que nunca cicatrizou completamente. Mexer com o assunto em Vitória ainda desperta medo, revolta e incredulidade.